23.1.10

Orlando

Tentando encerrar uma quinta-feira terrivelmente depressiva e quente, Dr. Neira recebe o paciente Orlando.

_ Bom dia Dr. Neira, podemos cortar logo o papo e finalizar a consulta um pouco mais cedo? Tenho duas reuniões importantes hoje. Estou de extremo bom humor, consegui fazer sete reuniões ontem, tomar cinco decisões fundamentais para a sustentabilidade do negócio e ainda sobrou tempo para jogar tênis com o diretor financeiro da Imbisa, aquela empresa de biomedicina que falei para o senhor.

_ Bom dia Orlando, fico feliz que alguém esteja fazendo algo de útil com o seu tempo nesse mundo.

Silêncio impera no consultório por trinta segundos, Orlando olha para trás e tenta encontrar os olhos do Dr. Neira.

_ Espera ai Dr. Neira, esse não era o momento de dizer que aqui não era lugar para tratarmos dos negócios que eu faço, mas sim do que importa de verdade na minha vida? O que está acontecendo aqui? Estou sentindo aquele clima de reunião de resultados quando um gerente de vendas acha que a vida terminou porque não atingiu a meta do mês.

_ É, estou me sentindo meio assim, com a diferença de que nunca fui gerente de nada, nem da minha vida.

_ Dr., pode se abrir comigo, contando que isso não tome mais do que 15 minutos, porque o senhor sabe, meu tempo é precioso e caro. O senhor sabia que se usarmos sapatos com cadarços todos os dias passaremos, durante toda a vida, nove dias amarrando os sapatos? Nove dias doutor. Em um dia eu consigo 1 milhão de lucro para a empresa, num dia ruim.

_ Você é notável Orlando, acho que você não precisa da minha ajuda.

_ Como assim não preciso Dr.?

_ Você é um sujeito inteligente, produtivo, gera divisas para o país e para o estado, porque diabos eu deveria tratar você podendo reduzir sua produtividade?

_ O senhor costuma dizer que faz isso para que eu não morra cedo, porque minha saúde fica comprometida sendo tão intenso.

_ Mas isso não faz diferença Orlando, você é produtivo, se precisar morrer aos 55 para ser produtivo desse jeito, que seja. Afinal de contas, sua produtividade só vai cair quando passar dos 55.

_ Mas eu não quero morrer Dr. Neira, não quero morrer cedo. Por isso gasto essa baba de dinheiro com o senhor.

_ Não seja cara de pau Orlando, o que você paga nas nossas consultas não é o seu gasto mensal com material de escritório.

_ Isso é verdade, mas não vem ao caso, material de escritório de executivo é coisa cara, quanto o senhor acha que vale essa caneta? Um mês do seu trabalho, um mês.

_ Ótima referência, é o que o meu trabalho vale, uma caneta por mês.

_ Dr., o senhor precisa de um psiquiatra.

_ Ninguém precisa de psiquiatra Orlando, eu preciso é de um remédio, ou quem sabe de um tiro?

_ O Remédio é mais barato Dr., o senhor sabe quanto pagamos para matarem aquele gerente de logística da concorrência lá no Pará? É caríssimo, se precisar parecer acidental então, é o dobro.

_ Você faria o favor de pagar para me matar?

_ Desculpe Dr. Neira, amigos, amigos, dinheiro a parte. É mais barato esperar o senhor definhar e se matar, me desculpe, pode ser cruel, mas é a lógica. Percebe? Acabei de economizar cerca de 20 mil reais do meu próprio dinheiro. O resultado efetivo é a sua derrocada moral e um possível desfecho trágico para a família, mas isso só terá me custado os 80 reais dessa consulta.

_ Peraí Orlando, você está pagando a consulta pelo plano de saúde? Não tínhamos combinado que você viria pelo particular? Assim eu arranjaria esses horários impróprios que você pede?

_ Desculpe Dr., redução de custos.

_ Você não presta Orlando.

_ Por isso eu dou resultados, Dr., se prestasse estaria pobre, usando essas calças engraçadas e pedindo para os outros me matarem.

_ Você está ficando insolente além de mão de vaca.

_ É o momento derradeiro Dr., quando nós discutimos, você diz que minha hora acabou e eu volto para o mundo cruel parar fazer a única coisa que sei fazer na vida, dar lucro.

_ Você deveria praticar mais tênis, você também sabe fazer isso.

_ Não sei não senhor. Pago para os outros jogarem comigo, profissionais.

_ Mas qual o sentido? Isso não dá lucro.

_ Se o senhor coubesse quantos contratos consegui numa quadra de tênis não diria isso.

_ Tudo bem Orlando, sua hora acabou.

_ Obrigado Dr., fique aqui com meu cartão. Se estiver pensando mesmo em se matar, ligue para a minha secretária, ela tem uns contatos e te dará acesso àquele prédio da empresa da concorrência, sabe aquele alto? Na avenida Flores?

_ Sei, mas pra que?

_ O senhor pula lá de cima, além de ser uma morte certa, ainda vai dar problema pra eles. Imagina só explicar para um cliente o que é aquele sujeito em formato de pizza na calçada?

_ Certo Orlando, nos vemos semana que vem.

_ Nos vemos Dr.

Diane

_ Bom dia Dr. Neira.

_ Bom dia dona Daiane, vamos entrar?

_ Muito agradecida pela gentileza.

_ Pode recostar-se no divã, fique à vontade.

_ Dr. Neira, preciso que o senhor converse comigo, não aquela coisa que o senhor costuma fazer de ficar calado para ver como eu vou reagir, preciso que o senhor converse comigo, tudo bem?

_ Sou todo ouvidos dona Daiane.

_ Pois bem, eu não suporto mais o meu filho?

_ Mas porque dona Daiane, o filho da senhora não é um homem bem sucedido e bom filho?

_ Era Dr. Neira, era. Virou um sujeito cheio de empáfia, cheio de si e mal resolvido. Veja que nem mesmo a mãe ele chama mais de mãe.

_ E como ele se refere à senhora?

_ Pelo meu nome.

_ E qual é o problema que a senhora tem com o seu nome.

_ Nenhum, mas quero que meu filho me chame de mãe.

_ Acho que a senhora exige muito dele. A opção por escolher como chamar a mãe é do filho e não
o contrário

_ Roberval, não me tire do sério.

_ Não me chama de Roberval, mãe.

_ Aaaaaah, agora sou sua mãe né, antes era dona Daiane.

_ Você sabe que Roberval não é um nome que caia bem pra minha vida profissional

_ E dona Daiane não é um que cai bem na minha.

_ Mas você é dona de casa.

_ Então, dona de casa que não é mãe é empregada.

_ A senhora não me deixa alternativas, vou repassar o seu horário para alguém que precise de verdade.

_ Meu filho, ninguém precisa de verdade de um psiquiatra

_ Isso é o que a senhora pensa. Quem curou sua mania por tomar remédios?

_ Um remédio, é claro!

_ Que remédio?

_ Aquele que você me receitou, Finasterida.

_ Mãe, aquele remédio é pra queda de cabelo. O papai tomava.

_ ... você está brincando.

_ Seríssimo.

_ Desnaturado. Me receita um remédio de verdade.

_ Antes a senhora vai ter que me chamar de Dr. Neira.

_ Dr. Neira, Dr. Neira, ainda usa o nome daquele inútil do seu pai.

_ Você queria que eu chamasse como? Dr. Andrógena? Esse sobrenome infeliz que o vovô deixou?

_ Dr. Roberval Andrógena Neira, um nome muito bonito, sim senhor.
Dr. Neira dá uma gargalhada gutural

_ Está rindo do que menino?

_ De nada. Só me lembrei de um paciente.

_ O que tem ele?

_ Sigilo profissional, não posso contar que ele colocou nome de feriados nacionais em todos os filhos.

_ Você só pode estar brincando.

_ É sério.

_ Eu sei que é sério, você só pode estar brincando que o Natanael é seu paciente.

_ É sim, conhece?

_ Foi meu primeiro namorado. Ele escolheu comigo o nome do nosso possível primeiro filho

_ Que nome era?

_ Roberval.

_ Você me deu o nome que escolheu com seu ex-namorado?

_ O bundão do seu pai não quis escolher um.

_ E porque a senhora não me deu um nome normal? De algum apóstolo, evangelista, anjo, santo... sei lá, Daniel, Rafael, Gabriel, Tiago, Pedro, Paulo, Francisco.. qualquer coisa que a bíblia pudesse te inspirar?

_ Aminadabe.

_ O que?

_ Aminadabe.

_ Que isso, uma proteína?

_ Minha segunda opção de nome pra você.

_ De onde veio isso?

_ É um personagem bíblico, do velho testamento, em hebraico quer dizer “o meu povo é nobre”.

_ E o que quer dizer Roberval?

_ É a aglutinação dos nomes Roberto e Valéria, tem origem teutônica

_ Mas a senhora chama Daiane e o pai chama José Augusto

_ Minha hora acabou Dr. Neira

_ Vai me explicar isso mãe?

_ Passar bem Dr. Neira, passar bem.