15.8.10

Dr. Neira no Censo

Época de censo. Toca a campainha do apartamento do Dr. Neira. Segunda-feira, 20 horas.

Dr. Neira atende:

Pois não?!

É o Censo, o senhor pode responder algumas perguntas? Não vai demorar muito.

Pode subir.

A moça sobe, vestida com um bonezinho azul, um colete esquisito e um palm no punho esquerdo.

Qual é o seu nome:

Dr. Neira.

Não, o seu nome mesmo.

Esse é o meu nome.

O primeiro nome?

Não, o sobrenome.

E qual é o primeiro?

Roberval Andrada Neira.

Com dois esses?

Moça, onde pode ter dois esses?

Não sei, sempre faço essa pergunta. Pra não ter erro sabe?

Sei.

Qual seu estado civil?

Divorciado.

Essa opção não tem seu Roberval, casado, solteiro ou tico-tico no fubá?

Como?

Casado ou solteiro?

Solteiro.

Sexo?

Sim.

Não moço, quero saber é se é homem ou mulher.

O que você acha minha querida.

Homem?

Tá vendo, te peguei, sou transexual. Sou mulher, mas fiz cirurgia, coloca ai, transexual.

Não tem essa opção Dr., é ou homem ou mulher.

Então eu quero que você coloque homem, porque é essa a minha alma.

Mas moço, não quero saber o sexo da sua alma, isso não vale nada pras estatísticas do país.

Quer dizer que não existe censo de transexual?

Não tem a opção aqui no computadorzinho, mas posso colocar uma observação no final.

Então coloque.

Quantos banheiros você tem na casa?

Pra que diabos você quer saber disso?

Não sei moço. Não complica a entrevista, quantos banheiros você tem na casa?

Conta banheiro de empregada?

Não.

Então tenho dois, mais o da empregada.

Quantas pessoas moram nessa casa?

Só eu.

Então pra que o senhor tem dois banheiros?

Essa pergunta tá no questionário?

Não, fiquei curiosa.

É que eu uso um pra fazer minhas necessidades e no outro eu afogo visitante indesejado na privada.

Credo moço.

Faz a próxima pergunta, vamos acabar com isso.

O senhor tem filhos?

Tenho, dois.

Esposa?

Já não disse que sou solteiro?

É que fiquei curiosa. Quanto o senhor ganha por mês?

Como assim?

Quanto o senhor ganha por mês, entre salários e outras fontes de renda?

Não quero revelar.

Credo moço, quanta falta de cidadania.

Cidadania o escambau, tenho direito à privacidade.

Mas moço, o senhor precisa entender que esses dados servem para medir a situação do país e garantir políticas públicas adequadas para o futuro.

Como assim você me pergunta se Roberval Andrada Neira escreve com dois esses e formula uma frase assim?

É que tá aqui, no computadorzinho, em argumentos para dar a respondentes que não querem responder.

Eu continuo sem querer responder.

O senhor é muito mal humorado.

Esse comentário está ai no computadorzinho?

Não, eu que acho mesmo. Qual é o seu nível de escolaridade?

Mestrado.

Então o senhor é mestre?

Não, sou psiquiatra.

Entendi.

Entendi o que?

Seu mal humor.

Uma coisa não tem nada com a outra.

Tem sim, pessoas que vivem de escutar o problema dos outros acabam amargas, se afastam de cristo.

Quem falou isso?

O pastor da minha igreja.

Trinta mil.

O que é trinta mil?

Meus rendimentos mensais.

Nossa moço, você faz um dinheiro bom hein! Quem faz isso tem uns 4 a 5 banheiros por casa. O senhor devia sorrir mais.

Me faltam motivos.

Quer ir na minha igreja? Por 20% o senhor vai melhorar tudo na sua vida.

20%?

20% dos seus rendimentos.

Por 20% dos meus rendimentos meus filhos voltavam a morar comigo.

E porque você não faz isso?

Prefiro continuar pagando os 15% pra minha mulher e manter todos eles longe. É mais barato e mais saudável.

Moço, acho que nossa entrevista acabou.

Mas agora eu estava começando a gostar.

Não seja cínico, ninguém gosta de censo.

Você é mais esperta que eu imaginava.

E o senhor mais previsível do que pensa.

Não seja insolente, quer vir tratar comigo? Faço de graça.

Não. Minha salvação está em mim mesma.

Seu pastor disse isso?

Não, o Kurt Cobain três meses antes de se matar.

Ele devia estar errado, não?

Depende se ele chegou no Nirvana ou não. É uma questão filosófica, não tenho tempo pra tratar dela com o senhor.

Você vai voltar?

Não, não vou.

De todo jeito leva meu cartão, você pode querer vir aqui um dia se consultar.

Passar bem Dr. Neira.

Espera, qual é o seu nome?

Eu faço as perguntas aqui. Passar bem Dr., passar bem.

8.8.10

O Meu amigo Lucas Nogueira

Na semana passada eu disse para mim mesmo: dias assim não deveriam acontecer nunca.

Na sexta feira à noite, chegando de viagem, recebi a notícia de que o meu querido amigo Lucas Nogueira, 27 anos, havia falecido.

O motivo? Pouco importa.

Por 30 minutos, enquanto dirigia o meu carro, refiz um pouco da nossa história juntos e precisei parar o carro para enxugar os olhos e continuar dirigindo.

Quando conheci o Lucas, entrando na faculdade, foi fácil perceber a índole do cara. Sujeito simples, gentil, tranqüilo (a não ser quando o assunto era futebol) e agregador. O Lukinhas era uma daquelas raras pessoas em torno das quais os outros se reúnem. Seja para organizar um churrasco, seja para representar o time da turma, seja para uma confidência, seja para uma boa conversa sem muito objetivo.

Sempre foi, por onde passou, alguém para ser gostado. E acreditem, poucos são queridos como ele foi e ainda é.

Compartilhamos uma mesma paixão, mas de lados opostos. Costumava a dizer que conheci poucos cruzeirenses fanáticos como eu sou atleticano. O Lukinhas era. O Cruzeiro era uma das prioridades na vida dele, assim como o Galo é na minha. Por essa razão nos respeitávamos. Nunca fiz uma piada sobre o assunto com ele, o inverso também valia.

Fomos fundadores do Manguaça Futebol e Regatas, o maior vencedor de títulos da Copa DA, da Faculdade de Comunicação e Artes da PUC Minas. Do Manguaça o Lukinhas era tudo. Cartola, capitão, jogador, torcedor e corneteiro oficial. Até o hino compusemos juntos.

Só no período da faculdade eu deixei de ser o Alexandre Abramo para me tornar o Guarapan. Guarapas para o Lukinhas.

Fizemos juntos o trabalho de conclusão de curso, um livro sobre a história do Mineirão.

Trabalhamos com futbeol na mesma época, ele como reporter da agência Placar, eu como assessor de imprensa de jogadores de futebol. Quando vim trabalhar no interior, o Lukinhas era o elo que ligava os amigos da faculdade. Ele garantia as inscrições do Manguaça e forçava para que estivéssemos em quadra o mais completos possível.

O último jogo dele pelo Manguaça terminou com uma expulsão. E dessa vez ele nem tinha culpa. Terminou o jogo fomos para a cerveja com vários amigos de futebol e de vida. Foi a última vez que eu estive com ele.

O peso em meu coração é enorme. Por ter perdido um amigo que era construído virtude sobre virtude. Por ver partir alguém tão jovem. E não só pelo amigo que se foi, mas por não ter podido fazer para ele a minha homenagem no momento da sua despedida. Por morar longe não pude ir ao velório, à cremação, ou à missa de 7º dia. Não pude chorar ao lado dos meus amigos. E sinto que ainda não consegui compreender o que aconteceu.

Ao mesmo tempo, fico sonhando acordado com as chances que desperdicei de passar mais tempo ao lado dele. Um churrasco que perdi, um aniversário que faltei, um jogo que não fui por acordar tarde. E esses momentos que não significavam nada há duas semanas, tornam-se, de repente, um vácuo gigantesco no meu passado. Sinto que não pude ser para ele o amigo que ele foi para mim.

Essa dor é solitária. Sofro sozinho, distante, sem saber o que fazer com ela.

Tudo o que me permiti nos últimos dias além de chorar foi escrever essas linhas, uma homenagem pobre e nem de longe digna do amigo que o Lukinhas foi para mim. Mas, infelizmente, é tudo o que posso fazer.

Ficam a saudade e o vazio. Espero poder superá-los com as recordações, todas elas afetivas, do meu amigo que se foi. Tudo o que lembro não vem em minha mente. Tudo o que reconstruo do nosso passado não é racional.

É tudo sentimento.

Acho que é assim que ele gostaria que eu fizesse.

Um descanse em paz para o Lukinhas. Para os amigos e familiares que ficam, a certeza de que o que ele fez ao nosso lado será lembrado, relembrado e celebrado para o resto das nossas vidas.

Um abraço Lukinhas. Garantirei que milhõe de brindes venham em sua homenagem. Nos vemos um dia, quando espero ouvi-lo me chamando de Guarapas.

Do seu amigo Alexandre Abramo.

1.3.10

Julio e o carnaval

Este texto é uma ode aos amigos bêbados. É uma história de ficção, portanto, qualquer semelhança com a realidade terá sido mero acaso. Ninguém seria capaz de fazer tudo isso sozinho, por isso reuni tudo num personagem só. Boa diversão.

Mais uma manhã quente. Aliás, a vida de Dr. Neira é tão arrastada, que ele sente como se estivesse no calor do verão carioca 24 horas. Pela quinta vez em dois dias ele pensa que vale gastar o dinheiro para trocar o climatizador que só ventila por um ar-condicionado de verdade. O telefone toca:

_ Dr. Neira, cliente novo está aguardando.

_ Mande entrar.

Entra na sala um homem de mais ou menos 25 anos, aparentemente recatado.

_ Bom dia, você é o Julio, certo?

_ Isso.

_ Bem vindo Julio, meu nome é Dr. Neira, queria que você me dissesse o que te trouxe aqui.

_ Bem, Dr., o que me trouxe aqui, na verdade, foi a insistência dos meus amigos.

_ Taí um motivo novo. Por favor, continue.

_ Então Dr., eu sou um sujeito pacato, do bem, tranqüilo, quase todo mundo gosta de mim, mas eu tenho um problema sério.

_ Todo mundo tem.

_ Quando eu bebo, eu viro outra pessoa.

_ Alcoolismo?

_ Não, isso é o que é mais interessante. Eu não sinto vontade extrema de beber, não me embebedo rápido, nem nada. Só gosto de beber. E quando eu bebo, eu bebo muito.

_ Até ai tudo bem. Temos um problema relativamente fácil de tratar.

_ Era isso o que todo mundo pensava Dr., mas eu extrapolei todos os limites nesse carnaval, por isso meus amigos me trouxeram aqui.

_ Essa pergunta que vou lhe fazer não é profissional, ok? Interprete como curiosidade. O que diabos você fez para que seus amigos, que imagino não serem muito diferentes de você, terem te trazido aqui?

_ Bem, eu comecei bebendo a tequila do meu amigo João Claudio e a partir daí meu carnaval é uma sucessão de flashes, precisei da ajuda dos outros para remontá-lo. Pra começar, eu inaugurei o primeiro xixi de carnaval na mala do Paulo,... dentro dela.

_ No primeiro dia? Que sacanagem hein!?

_ Pior, o Paulo é o atual namorado da minha ex. Ele ficou boladasso.

_ Boladasso?

_ É, ficou puto mesmo. Mas ele não entendeu que não foi porque era a mala dele. Eu fiz xixi nela porque era a única que estava aberta. Que bêbado eu seria se fizesse xixi numa mala fechada?

_ Você tem razão. Em frente, a história é boa.

_ Dizem que ele queria me bater, mas até ai meus colegas estavam pacientes e seguraram o cara, que é novato na turma. Em seguida, eu fui para a rua e comecei a sacanear as pessoas que passavam e fiz amizade com o pessoal das barraquinhas montadas em frente à nossa casa. Ai passou um daqueles cariocas que vêem pro carnaval em Minas e ficam de sunga e tênis o carnaval inteiro, sabe?

_ Sei, tenho muita preguiça desses.

_ Eu também. Aí que o primeiro que passou eu puxei a sunga dele.

_ Você tá me sacaneando.

_ Não, to falando sério. Puxei e fiquei falando assim: Vamos ver o tamanho do peru, vamos ver o tamanho do peru!

_ Ele bateu em você.

_ Não, Dr. O senhor acredita? Ele ficou tão desesperado em segurar a sunga e fugir de mim, que
nem pensou nisso. Ai os barraqueiros de frente da casa perceberam que eu fazia mal para os negócios deles. Um hipipe que fazia umas tatuagens com tinta de jenipapo mandou eu ir embora de lá. Eu falei que não saia, que ele fosse tomar ácido pra outro lado. Então ele mandou eu ir praquele lugar e eu falei que era pra ele ficar tranqüilo, que a minha presença ali garantia vantagens pra ele.

_ Que vantagens?

_ Pois é, falei que ele podia lavar as roupas dele na nossa casa.

_ E o que os seus amigos acharam disso?

_ Em primeiro momento nada, porque não ficaram sabendo, mas quando eles viram aquela hippie gorda lavando roupa no tanque da área da casa ficaram bem putos.

_ Eles não expulsaram ela de lá?

_ Não, ela falou que o Sr. Julio tinha dado autorização. E ai os barraqueiros viraram meus amigos. Tentava conseguir clientes para eles, tomei conta da barraquinha desse hippie por 30 minutos.

_ Bêbado?

_ Completamente Dr. Aliás, ele ficou meio chateado comigo.

_ Porque?

_ Porque eu vendi uma pulseira que valia 10 reais por 1.

_ Ele mereceu.

_ Concordo.

_ Precisaram segurar ele pra ele não me bater. Mas tudo bem. Em seguida eu organizei um concurso de encher camisinha com o nariz.

_ Como assim?

_ Funciona assim, primeiro você dá uma alargada na camisinha com as mãos, depois você coloca a camisinha na cabeça até o final do nariz, acima da boca, então os competidores sopram com o nariz pra camisinha ir enchendo. O que conseguir encher mais sem estourar ganha.

_ Deus do céu.

_ É bem divertido, tirando que o lubrificante arde os olhos e a pele, além de deixar o cabelo nojento. Além disso você precisa dar sorte na hora de estourar, pra não machucar o rosto. Eu não venci. Mas fiquei com o olho e a pele ardendo.

_ Acabou?

_ Não. Meu esporte favorito era não deixar as pessoas dormirem. Isso me causou alguns transtornos. Principalmente quando eu resolvi contratar um mendigo pra acordar a galera em casa.

_ Que bêbado escroto você é hein Julio.

_ Não Dr., nessa hora eu estava sóbrio. Mas aí, no último dia deixei a galera dormir e, sorrateiramente, depois de empurrar a estante, fiz cocô na varanda.

_ Como é?

_ Isso mesmo.

_ Mas porque você empurrou a estante?

_ Pelo mesmo motivo que fiz cocô na varanda, estava bêbado.

_ Acho que foi o lugar mais estranho que eu já ouvi alguém dizer que fez cocô.

_ Na gaveta.

_ O que?

_ Teve uma vez que eu fiz cocô dentro da gaveta.

_ Você é bizarro.

_ Pois é Dr. É por isso que eu estou aqui.

_ Vem cá. Onde é que você passou carnaval?

_ Em Diamantina.

_ Você não tem nada Julio, pode ir pra casa.

_ Como assim Dr.?

_ Você passou carnaval em Diamantina, se não existissem pessoas sem noção como você o carnaval de Diamantina não existiria. Você não precisa de mim Julio, precisa de amigos novos, todo carnaval.

23.1.10

Orlando

Tentando encerrar uma quinta-feira terrivelmente depressiva e quente, Dr. Neira recebe o paciente Orlando.

_ Bom dia Dr. Neira, podemos cortar logo o papo e finalizar a consulta um pouco mais cedo? Tenho duas reuniões importantes hoje. Estou de extremo bom humor, consegui fazer sete reuniões ontem, tomar cinco decisões fundamentais para a sustentabilidade do negócio e ainda sobrou tempo para jogar tênis com o diretor financeiro da Imbisa, aquela empresa de biomedicina que falei para o senhor.

_ Bom dia Orlando, fico feliz que alguém esteja fazendo algo de útil com o seu tempo nesse mundo.

Silêncio impera no consultório por trinta segundos, Orlando olha para trás e tenta encontrar os olhos do Dr. Neira.

_ Espera ai Dr. Neira, esse não era o momento de dizer que aqui não era lugar para tratarmos dos negócios que eu faço, mas sim do que importa de verdade na minha vida? O que está acontecendo aqui? Estou sentindo aquele clima de reunião de resultados quando um gerente de vendas acha que a vida terminou porque não atingiu a meta do mês.

_ É, estou me sentindo meio assim, com a diferença de que nunca fui gerente de nada, nem da minha vida.

_ Dr., pode se abrir comigo, contando que isso não tome mais do que 15 minutos, porque o senhor sabe, meu tempo é precioso e caro. O senhor sabia que se usarmos sapatos com cadarços todos os dias passaremos, durante toda a vida, nove dias amarrando os sapatos? Nove dias doutor. Em um dia eu consigo 1 milhão de lucro para a empresa, num dia ruim.

_ Você é notável Orlando, acho que você não precisa da minha ajuda.

_ Como assim não preciso Dr.?

_ Você é um sujeito inteligente, produtivo, gera divisas para o país e para o estado, porque diabos eu deveria tratar você podendo reduzir sua produtividade?

_ O senhor costuma dizer que faz isso para que eu não morra cedo, porque minha saúde fica comprometida sendo tão intenso.

_ Mas isso não faz diferença Orlando, você é produtivo, se precisar morrer aos 55 para ser produtivo desse jeito, que seja. Afinal de contas, sua produtividade só vai cair quando passar dos 55.

_ Mas eu não quero morrer Dr. Neira, não quero morrer cedo. Por isso gasto essa baba de dinheiro com o senhor.

_ Não seja cara de pau Orlando, o que você paga nas nossas consultas não é o seu gasto mensal com material de escritório.

_ Isso é verdade, mas não vem ao caso, material de escritório de executivo é coisa cara, quanto o senhor acha que vale essa caneta? Um mês do seu trabalho, um mês.

_ Ótima referência, é o que o meu trabalho vale, uma caneta por mês.

_ Dr., o senhor precisa de um psiquiatra.

_ Ninguém precisa de psiquiatra Orlando, eu preciso é de um remédio, ou quem sabe de um tiro?

_ O Remédio é mais barato Dr., o senhor sabe quanto pagamos para matarem aquele gerente de logística da concorrência lá no Pará? É caríssimo, se precisar parecer acidental então, é o dobro.

_ Você faria o favor de pagar para me matar?

_ Desculpe Dr. Neira, amigos, amigos, dinheiro a parte. É mais barato esperar o senhor definhar e se matar, me desculpe, pode ser cruel, mas é a lógica. Percebe? Acabei de economizar cerca de 20 mil reais do meu próprio dinheiro. O resultado efetivo é a sua derrocada moral e um possível desfecho trágico para a família, mas isso só terá me custado os 80 reais dessa consulta.

_ Peraí Orlando, você está pagando a consulta pelo plano de saúde? Não tínhamos combinado que você viria pelo particular? Assim eu arranjaria esses horários impróprios que você pede?

_ Desculpe Dr., redução de custos.

_ Você não presta Orlando.

_ Por isso eu dou resultados, Dr., se prestasse estaria pobre, usando essas calças engraçadas e pedindo para os outros me matarem.

_ Você está ficando insolente além de mão de vaca.

_ É o momento derradeiro Dr., quando nós discutimos, você diz que minha hora acabou e eu volto para o mundo cruel parar fazer a única coisa que sei fazer na vida, dar lucro.

_ Você deveria praticar mais tênis, você também sabe fazer isso.

_ Não sei não senhor. Pago para os outros jogarem comigo, profissionais.

_ Mas qual o sentido? Isso não dá lucro.

_ Se o senhor coubesse quantos contratos consegui numa quadra de tênis não diria isso.

_ Tudo bem Orlando, sua hora acabou.

_ Obrigado Dr., fique aqui com meu cartão. Se estiver pensando mesmo em se matar, ligue para a minha secretária, ela tem uns contatos e te dará acesso àquele prédio da empresa da concorrência, sabe aquele alto? Na avenida Flores?

_ Sei, mas pra que?

_ O senhor pula lá de cima, além de ser uma morte certa, ainda vai dar problema pra eles. Imagina só explicar para um cliente o que é aquele sujeito em formato de pizza na calçada?

_ Certo Orlando, nos vemos semana que vem.

_ Nos vemos Dr.

Diane

_ Bom dia Dr. Neira.

_ Bom dia dona Daiane, vamos entrar?

_ Muito agradecida pela gentileza.

_ Pode recostar-se no divã, fique à vontade.

_ Dr. Neira, preciso que o senhor converse comigo, não aquela coisa que o senhor costuma fazer de ficar calado para ver como eu vou reagir, preciso que o senhor converse comigo, tudo bem?

_ Sou todo ouvidos dona Daiane.

_ Pois bem, eu não suporto mais o meu filho?

_ Mas porque dona Daiane, o filho da senhora não é um homem bem sucedido e bom filho?

_ Era Dr. Neira, era. Virou um sujeito cheio de empáfia, cheio de si e mal resolvido. Veja que nem mesmo a mãe ele chama mais de mãe.

_ E como ele se refere à senhora?

_ Pelo meu nome.

_ E qual é o problema que a senhora tem com o seu nome.

_ Nenhum, mas quero que meu filho me chame de mãe.

_ Acho que a senhora exige muito dele. A opção por escolher como chamar a mãe é do filho e não
o contrário

_ Roberval, não me tire do sério.

_ Não me chama de Roberval, mãe.

_ Aaaaaah, agora sou sua mãe né, antes era dona Daiane.

_ Você sabe que Roberval não é um nome que caia bem pra minha vida profissional

_ E dona Daiane não é um que cai bem na minha.

_ Mas você é dona de casa.

_ Então, dona de casa que não é mãe é empregada.

_ A senhora não me deixa alternativas, vou repassar o seu horário para alguém que precise de verdade.

_ Meu filho, ninguém precisa de verdade de um psiquiatra

_ Isso é o que a senhora pensa. Quem curou sua mania por tomar remédios?

_ Um remédio, é claro!

_ Que remédio?

_ Aquele que você me receitou, Finasterida.

_ Mãe, aquele remédio é pra queda de cabelo. O papai tomava.

_ ... você está brincando.

_ Seríssimo.

_ Desnaturado. Me receita um remédio de verdade.

_ Antes a senhora vai ter que me chamar de Dr. Neira.

_ Dr. Neira, Dr. Neira, ainda usa o nome daquele inútil do seu pai.

_ Você queria que eu chamasse como? Dr. Andrógena? Esse sobrenome infeliz que o vovô deixou?

_ Dr. Roberval Andrógena Neira, um nome muito bonito, sim senhor.
Dr. Neira dá uma gargalhada gutural

_ Está rindo do que menino?

_ De nada. Só me lembrei de um paciente.

_ O que tem ele?

_ Sigilo profissional, não posso contar que ele colocou nome de feriados nacionais em todos os filhos.

_ Você só pode estar brincando.

_ É sério.

_ Eu sei que é sério, você só pode estar brincando que o Natanael é seu paciente.

_ É sim, conhece?

_ Foi meu primeiro namorado. Ele escolheu comigo o nome do nosso possível primeiro filho

_ Que nome era?

_ Roberval.

_ Você me deu o nome que escolheu com seu ex-namorado?

_ O bundão do seu pai não quis escolher um.

_ E porque a senhora não me deu um nome normal? De algum apóstolo, evangelista, anjo, santo... sei lá, Daniel, Rafael, Gabriel, Tiago, Pedro, Paulo, Francisco.. qualquer coisa que a bíblia pudesse te inspirar?

_ Aminadabe.

_ O que?

_ Aminadabe.

_ Que isso, uma proteína?

_ Minha segunda opção de nome pra você.

_ De onde veio isso?

_ É um personagem bíblico, do velho testamento, em hebraico quer dizer “o meu povo é nobre”.

_ E o que quer dizer Roberval?

_ É a aglutinação dos nomes Roberto e Valéria, tem origem teutônica

_ Mas a senhora chama Daiane e o pai chama José Augusto

_ Minha hora acabou Dr. Neira

_ Vai me explicar isso mãe?

_ Passar bem Dr. Neira, passar bem.