16.4.08

A Moça com Olhos de Deus

Até onde o céu enxergava, só era nuvem.

Nuvem mesmo, no singular, porque era uma coisa só.

Como se não existisse céu além. A moça, pobre no jeito de vestir, simples no jeito de olhar, caminhava com o olho atento no ir e vir das luzes do relâmpago. Aquele trovejar forte, pra quem tem ouvido fraco era tortura, mas pra quem tem os ouvidos do coração é sinfonia de vida.

Na secura dos idos de junho, um céu como aquele era de dar arrepio.

Arrepio mesmo, no singular, porque era uma coisa só.

Voltemos à moça então. Ela não tinha muito dinheiro, isso já está claro. E tinha sido exatamente por isso que ela estava ali, olhando pro céu, com os olhos carregados de lágrima.

Lágrima mesmo, no singular, porque era uma coisa só.

Foram três dias de faxina pesada na casa da dona da esquina Barcelos, de gente fina. Trabalho duro de quem quer vencer, mas não estudou nem foi criada pra ganhar bem. Na vila em que ela morava, trabalhar duro era praxe, mas muita mulher fazia a opção fácil de se vender para pagar as contas. Até porque aquele amontoado de mulher pobre não tem o direito de guardar o que é delas por direito. Sobra de opção entregar o único bem que têm, o corpo.

Corpo mesmo, no singular, porque era uma coisa só.

Então ela saiu da casa, com a perna doce de cansada, com os braços ardidos de trabalho, com o lombo doendo de curvada, e entrou no super mercado. Nem tinha reparado que a calça batida e a blusa rasgada lhe davam aquele ar de quem mora na rua. Foi entrar e tomar o puxão pelo braço. O segurança, senhor da truculência, casado com uma moça igual a ela, só que sem a blusa rasgada, correu pra tirá-la dali, antes que o chefe percebesse e lhe desse outra sentada.

Jogou a moça pra fora sem se fazer de rogado. Bateu uma pontinha de amargura, lembrou das outras cinco vezes em que fizera aquilo no mês, pensou na cara quase sempre igual de quem sofre com o desprezo, e sentiu, história por história, várias pontadas de arrependimento.


E aí, definitivamente é no singular, porque arrependimento é uma coisona só.

Ela levantou então da calçada que caíra, olhou pro céu e viu aquela nuvem do arrepio, sentiu a lágrima escorrer no corpo, mas a lágrima virou, quase que do nada, de tristeza pra emoção. Ela não arrependeu de ser o que era.

Porque na vida daquela moça sem jeito, sem graça para o mundo e sem valor pra quem é rico, olhar para o céu com os olhos de Deus, sentir a chuva bater no rosto, com o vento soprando o ar da liberdade nos ouvidos, era um conjunto divino de realização.

Realização mesmo, no singular, porque era uma coisa só...