28.10.09

Natanael

Sessão mensal, Dr. Neira conversa há 45 minutos com Natanael, um dos 4 hipocondríacos.

_ E ai Dr. Neira, eu comecei a ver aquela luz forte, cegando uma parte da minha vista esquerda, e uma dor intensa acompanhando, eu tenho certeza que era um problema nos ligamentos suspensores do cristalino. O tipo de dor é característico.

_ Natanael, essa é sua sessão de psicoterapia, eu sou seu psiquiatra, não seu oftalmologista.

_ Mas Dr., o senhor vai entender que, no final, está tudo interligado.

_ Continue.

_ E aquela dor tremenda Dr., tudo o que eu conseguia lembrar era da televisão, aquele programa do Picachu que meu filho estava assistindo. O senhor ficou sabendo que crianças japonesas morreram assistindo aquilo, né doutor?

_ Só as crianças epilépticas, Natanael. E elas não morreram, o desenho as induziu a uma crise, por causa das luzes.

_ Exatamente, por causa das luzes, foi o que eu disse. As luzes devem ter deslocado meus ligamentos suspensores...

_ Natanael, as luzes não têm força para deslocar seus ligamentos suspensores

_ Peraí, o senhor não disse que era meu psiquiatra e não meu oftalmologista, o que o senhor sabe sobre ligamentos suspensores?
Dr. Neira se cala e olha para o teto do consultório, suplicando a Deus por uma morte rápida

_ Continue Natanael.

_ Pois então, eu acho que estou, na realidade, somatizando a minha relação ruim que tenho com meu filho menor, o Natal.

_ Talvez seja a primeira coisa sensata que você tenha dito hoje, seu filho se chama Natal?

_ Isso doutor.

_ Não basta sua mãe ter feito a sacanagem de colocar seu nome de Natanael você faz isso com o garoto? Quer o que? Que ele fique feliz pelo pai que você é?
Natanael fica boquiaberto, consternado com a frase do Dr. Neira

_ Porra doutor, ai o senhor esculachou.

_ Eu perdi a paciência Natanael, não entendo porque você continua gastando o seu dinheiro para vir aqui, não sei por que diabos você fica assistindo desenho do Picachu com o seu filho e o pior de tudo, não consigo entender como você teve a coragem de colocar o nome do seu filho de Natal, tem 40 anos que ninguém coloca esse nome em ninguém.

_ Não fui eu que escolhi.

_ Quem foi então? Sua esposa?

_ Não, meu filho maior, o Pascoal.

_ Puta merda Natanael, puta merda! Seus filhos todos têm nome de feriado religioso? Tem a Nossa Senhora Aparecida também?

_ Não, tem a Maria Aparecida e tem o Tiradentes.

_ A escolha é igualmente infeliz, mas pelo menos é um nome de feriado não religioso.

_ Não quero mais vir aqui, o senhor não tem o menor senso de ética profissional.

_ Pode até ser, mas meu filho chama Claudio e minha filha Mariana, e eu sou normal.

_ Olha doutor, eu posso ser maluco, mas o senhor também não é normal não.

_ Me dê um motivo.

_ Essa calça que o senhor usa.

_ Qual o problema? Comprei na Índia, está na moda.

_ Mas parece que o senhor passa o dia cagado.

_ Natanael, seu tempo acabou, até semana que vem.

_ Até lá doutor.

Neide

O telefone toca. Sorumbático, Dr. Neira olha o número do telefone. Número privado. Muitas coisas incomodam Dr. Neira profundamente, mas apenas duas ele odeia: banana caramelada e número privado.

_ Dr. Neira?

_ Isso.

_ Eu me decidi, vou tomar quimioterapia

_ Neide?

_ Claro, que outro paciente no meu estado você tem?

_ Três, tenho três.

_ Pois então, estou decidida!

_ Neide, nós já conversamos sobre isso, você tem uma tendinite crônica na perna, você não
precisa de quimioterapia.

_ O senhor está errado, eu tenho câncer.

_ Neide, se você já decidiu porque me ligou?

_ Porque o senhor é o responsável pela minha saúde.

_ Responsável pelo que eu receito, certo?

_ Não senhor, eu vou tomar quimioterapia e se alguma coisa me acontecer você é o responsável.

_ Mas Neide, eu sou seu psiquiatra, não posso te receitar sessões de quimioterapia.

_ Pois não vai precisar, eu já arranjei tudo, comprei lá no centro o produto e as seringas.

_ Neide, você está maluca? Isso não é produto que se ache no centro, é remédio controlado.

_ O senhor não tem noção das coisas que podemos achar no centro.

_ Você precisa de acompanhamento médico pra tomar quimioterapia.

_ Por isso liguei pro senhor.

_ Pois esqueça, o máximo que você vai ter é a minha solidariedade à sua família depois do enterro.

_ Credo Dr., o senhor anda tão mórbido.

_ Tem jeito de ser diferente com você Neide?

_ Tem, com carinho e jeito eu costumo ceder.

_ Eu já desisti.
Alguns segundos se passam e Neide abranda a voz.

_ Dr. Neira, o que o senhor acha que eu deveria tomar para curar meu câncer?

_ Posso ser honesto Neide?

_ Pode!

_ Vai tomar no seu cu.
(barulho de telefone desligado)
Trinta segundos se passam com Neide pensativa.

_ É, agora ele apelou mesmo...
Neide tira o telefone da orelha e grita para dentro do quarto:

_ Benhê, pega o telefone do Dr. Claudio!?

Doutor Neira

Dr. Neira é um psiquiatra sem muita motivação nem convicção no que faz. Ele era clínico geral, se especializou em cirurgia plástica, mas descobriu um grande filão atendendo gente estranha.

Foi casado, mas a mulher abandonou a casa e hoje luta na justiça por uma pensão monstruosa. Tem um casal de filhos que moram com a mulher. Te mais coisas na lista do que não gosta do que gosta. No último ano perdeu a paciência com as coisas da vida e ficou agressivo.

Com vocês:
Dr. Neira

Era uma tarde de domingo, depois do campeonato brasileiro recomeçou o Fasutão. Rodada sem graça. No “se vira nos 30”, um picher vestido de bailarina não quis fazer o número, apesar de todos os esforços do adestrador cearense.

E ele ali, sentado no sofá, o sol quente, a sala abafada,... O telefone celular reservado para atender aos pacientes toca. Ele já sabe, a essa hora de domingo ou morreu alguém ou é um dos 4 hipocondríacos. Dr. Neira conhece os seus pacientes. Os 4 hipocondríacos, nome carinhosos que ele deu para Jorge, Daiane, Natanael e Neide.

_ Dr. Neira, agora é sério, eu estou infectado.
Era o Jorge.

_ Calma Jorge, o que aconteceu?

_ Eu pisei na linha antes de tomar água.

_ E?

_ Como assim: E? Como assim? O senhor sabe muito bem o que esse tipo de deslize pode causar.

_ Não Jorge, eu já te expliquei, não vai acontecer nada!

_ Mas Dr. Neira, o senhor não está me entendendo, eu não só pisei na linha, como pisei na linha da cozinha, que o senhor sabe, é mais complicada, e ai tomei a água em seguida. Não acredito até agora que fiz isso. Estou sentindo minhas pernas arquearem.

_ Jorge, se controle, você tomou o seu floral hoje?

_ Floral o escambau Dr. Neira já disse pro senhor que eu quero medicamento pesado, aqueles pra dormir, que dão alucinação, quero coisa sossega Leão, compreende? Olha só, não estou sentindo minha perna esquerda, irradiou pras costas Dr., eu vou morrer, agora já era.

_ Jorge, já te expliquei que sua patologia é psicológica, nada físico pode acontecer, a menos que você mesmo cause isso.

_ Então Dr., eu mesmo causei, eu pisei na linha e bebi a água em seguida. Devia ter anulado pisando com a outra perna, mas não fiz. Minha espinha gelou Dr., agora já era, estou nos meus últimos instantes de vida e conversando com o senhor, devia ter ficado pra assistir aquele picher bonitinho dançar no Faustão.

_ Ele não dançou!

_ Como assim não dançou?

_ Não sei, acho que ficou com medo da platéia, ficou lá tremendo e não dançou.

_ Sério mesmo Dr.?

_ Sério.

_ Que sacanagem, achei que aquele cearense ia levar.

_ Pois é.

_ Estou me sentindo melhor Dr., acho que meus anticorpos agiram contra os invasores, eu estou sentindo minha perna esquerda de novo, não que ela mexa, mas estou sentindo.

_ Isso é bom Jorge.

_ É sim, me sinto bem melhor Dr.

_ Então, aprendemos alguma lição hoje?

_ ...Acho que sim Dr.

_ E quais foram elas.

_ Bom, primeiro não pisar na linha antes de tomar água...

_ Meu Deus.

_ Depois que, se pisar na linha com uma perna, pise com a outra pra anular, depois tome a água. Por último, nunca coloque saia num pincher macho e leve ele pra dançar em público.

_ Jorge, boa tarde, eu vou desligar, daqui a pouco tem fantástico.

_ OK Dr. Obrigado pela ajuda. Amanhã nos falamos.