11.11.08

Um até mais pro meu avô Boris

Já comecei este texto seis vezes. Na hora em que as letras vão se aglomerando e os sentimentos transbordando do peito no papel eu sempre acho que não ficou à altura dele. Do meu avô. Do meu querido avô Boris.

No dia 20 de julho, depois da rodada do campeonato brasileiro, meu avô teve um infarto fulminante e morreu. Meu avô sempre foi um homem das festas, da conversa alta, das piadas e das risadas. Ele não tolerava lenga-lenga. Com ele era tudo preto no branco, botafoguense dos tempos áureos que era, não poderia ser diferente.

Para o meu avô, a gente tinha que estudar e trabalhar em todas as oportunidades que aparecessem. Foi o que ele fez na vida. Se aposentou como diretor da câmara municipal de Belo Horizonte. Lá ele cresceu por conta própria, Sem precisar de politicagem para vencer na vida. Foi advogado trabalhista de grandes empresas ao mesmo tempo.

Em uma das que trabalhou, ficou um tempo atuando de graça, em respeito aos donos quando a empresa estava quebrando. Até hoje devem mais de 200 mil para o meu avô.

Jogou futebol pelo aspirante do América, dizem que ele era ótimo. Ele ajudou a família em tudo. Pagou minha faculdade para dar uma folga para minha mãe e meu pai. Quando viajava, levava todo mundo, a família inteira, sem deixar ninguém de fora.

Ele era um aglomerador, um chefe de família à moda antiga. Mas, além disso tudo, meu avô era um exemplo de honestidade. Ele sabia que isso dificultava muita coisa na vida, mas sempre achou que o preço valia a pena ser pago. Aliás, ele sempre teve medo do exemplo que tinha sido. Dizia que eu devia ter mais maldade nas coisas, que eu acreditava que todo mundo era bom e direito, mas que o mundo não era assim.

Meu avô cantava com uma voz poderosa. Aprendeu a tocar piano depois dos sessenta anos. Adorava ver filmes e tinha duas televisões na sala para poder ver a novela e acompanhar o futebol ao mesmo tempo.

Quando eu estava quase tomando bomba no segundo ano do Loyola, meu avô me chamou e disse assim: "Meu filho, faça o seu melhor, mas não tenha medo de repetir um ano. Eu repeti dois e me tornei quem eu sou. Suas notas não vão nunca dizer quem você, de fato, é"

Ele descia todas as manhãs para a banca do Jacaré. Passava lá umas duas horas conversando com a turma da rua e colocando o papo em dia. Quando o estacionamento do Geraldo ainda existia do lado de casa, a outra hora da manhã era lá.

Quando meu avô ganhou 80 mil na loteria esportiva, acertando na mosca a derrota do Barcelona de Rivaldo para o Espanyol, lanterna do campeonato espanhol, ele deu dinheiro para as empregadas, para o lavador do carro, para os filhos, para os netos. Pegou minha avó, minha mãe e meu pai e passaram 32 dias na Europa dormindo nos melhores hotéis e comendo nos melhores restaurantes. Meu avô sabia que gastar dinheiro com quem você ama é um prazer sem limites.

Meu avô me apoiou quando fui trabalhar nos Estados Unidos. Ele ajudava minha avó a selecionar as notícias que eu mais gostaria de ver nos jornais brasileiros e me mandava pelo correio.

Meu avô me apoiou até quando eu resolvi que iria estudar jornalismo, essa profissão meio sem pé nem cabeça. Me apoiou quando eu fui para Três Marias trabalhar, quando eu voltei e fiquei na Gerdau, pertinho da casa dele, e economizava meus tickets comendo com ele e vovó.

Meu avô me ensinou a dirigir no Belvedere, naquele Santana verde que acabaram roubando na porta da minha casa. A decepção automobilística dele foi quando aposentaram o Opala. Meu avô teve vários. Um laranja hidramático, um diplomata que ele capotou e até saiu no jornal como um milagre ter saído alguém vivo daquele emaranhado de aço.

Meu avô teve que enterrar um filho. Meu tio Paulo Sérgio.

Quando ele faleceu, naquele domingo triste, eu fui junto à minha mãe e meu pai na funerária. Meu avô decidiu que queria ser cremado. Podia ser em qualquer caixa de madeira, ele brincava sempre.

Coube a mim escolher a frase que colocariam na coroa que vinha junto do pacote da funerária. Nessas horas a gente vê como a morte é uma coisa impessoal para algumas pessoas. Eram umas trinta mensagens do tipo "Nossas saudades eternas", "Os seus filhos, netos e irmãos te amarão para sempre", e por ai vai. Eu pedi uma caneta e escrevi assim: "Um homem de extremos que transbordou o amor, transformando-o em família".

Na missa de sétimo dia, busquei forças no fundo do peito para cantar três músicas. Por último um pedido da minha avó, "Eu sei que vou te amar", do Vinícius. O Beto, sobrinho do meu avô, meu primo em segundo grau, tocou o teclado. Meu pai disse que eu nunca cantei como naquele dia. Minha irmã escreveu o texto mais bonito que eu já pus os olhos na vida. Eu tive que ler lá na frente, já que a Tati tinha acabado de ter o Augusto.

Foi triste, sim. Meu avô é muito querido pra mim. Marcou minha vida e me ensinou muita coisa. Mais do que normalmente as pessoas fazem. Meu avô não sabia ser mais ou menos. Ele era muito e tudo. Hoje minha família perdeu o seu muito e o seu tudo.

Eu estou tentando vô. Tentando superar a perda, tentando ser forte como você gostaria e me ensinou a ser. Eu sou o neto homem mais velho, eu sei. Mas tudo o que eu queria agora era deitar e chorar por uma semana inteira. Mas eu não posso. Tem uma família mal acostumada para ser cuidada. Por isso eu arrumei forças para cantar naquela missa e para falar no dia da sua cremação. Eu sei do meu papel e não vou fugir dele, mas que dói vô, isso dói.

Agora ficam as lembranças e as lições, por mais clichê que essa frase possa soar. Uma pessoa como o meu avô é eterna. Tinha um filme que ele gostava bastante, Gladiador, que tem uma frase que não me saiu da cabeça até agora: "O que a gente faz em vida, ecoa pela eternidade". Eu vou garantir que ecoe.

17.6.08

O menino que tinha medo do novo.

Enquanto o sol brilhava, não havia chatice que desfizesse o seu sorriso. Aquele menino, era de se reconhecer, sabia fazer as pessoas rirem. Mas tinha uma coisa que ele não sabia lidar: era a escuridão.

Chegava a noite, apagavam-se as luzes, e ele se metia debaixo da cama com medo do que viria.

_ É medo de monstro, dizia a mãe.

_ É frescura de menino, dizia o pai.

Nem medo nem frescura. O que o menino tinha era receio do novo. Era não saber se, quando acordasse, as coisas ainda estariam ali, do jeito que ele conhecia. E aí, se não estivessem, como suas piadas teriam graça? Como o seu sorriso iria brilhar?

Mas então veio a tempestade. A tempestade que varreu a cidade. Era uma noite de junho, estranho chover em junho...

De ponta a ponta, água que não acabava mais. Ele debaixo da cama, com medo do que viria.

E aí veio a luz do raio seguida pelo barulho do trovão.

E no meio da noite, no nada absoluto, ele viu o clarão. E foi então que ele entendeu que, mesmo no momento mais escuro, se ele soubesse olhar, haveria luz.

As encruzilhadas estão aí, a novidade também. Não é preciso ter medo da novidade. Ela vem para o bem, ela vem para mostrar o caminho, ela vem para o progresso.

Não há razão para não inovar. Não há razão para temer o escuro porque é nele que somos obrigados a tecer o futuro.

16.4.08

A Moça com Olhos de Deus

Até onde o céu enxergava, só era nuvem.

Nuvem mesmo, no singular, porque era uma coisa só.

Como se não existisse céu além. A moça, pobre no jeito de vestir, simples no jeito de olhar, caminhava com o olho atento no ir e vir das luzes do relâmpago. Aquele trovejar forte, pra quem tem ouvido fraco era tortura, mas pra quem tem os ouvidos do coração é sinfonia de vida.

Na secura dos idos de junho, um céu como aquele era de dar arrepio.

Arrepio mesmo, no singular, porque era uma coisa só.

Voltemos à moça então. Ela não tinha muito dinheiro, isso já está claro. E tinha sido exatamente por isso que ela estava ali, olhando pro céu, com os olhos carregados de lágrima.

Lágrima mesmo, no singular, porque era uma coisa só.

Foram três dias de faxina pesada na casa da dona da esquina Barcelos, de gente fina. Trabalho duro de quem quer vencer, mas não estudou nem foi criada pra ganhar bem. Na vila em que ela morava, trabalhar duro era praxe, mas muita mulher fazia a opção fácil de se vender para pagar as contas. Até porque aquele amontoado de mulher pobre não tem o direito de guardar o que é delas por direito. Sobra de opção entregar o único bem que têm, o corpo.

Corpo mesmo, no singular, porque era uma coisa só.

Então ela saiu da casa, com a perna doce de cansada, com os braços ardidos de trabalho, com o lombo doendo de curvada, e entrou no super mercado. Nem tinha reparado que a calça batida e a blusa rasgada lhe davam aquele ar de quem mora na rua. Foi entrar e tomar o puxão pelo braço. O segurança, senhor da truculência, casado com uma moça igual a ela, só que sem a blusa rasgada, correu pra tirá-la dali, antes que o chefe percebesse e lhe desse outra sentada.

Jogou a moça pra fora sem se fazer de rogado. Bateu uma pontinha de amargura, lembrou das outras cinco vezes em que fizera aquilo no mês, pensou na cara quase sempre igual de quem sofre com o desprezo, e sentiu, história por história, várias pontadas de arrependimento.


E aí, definitivamente é no singular, porque arrependimento é uma coisona só.

Ela levantou então da calçada que caíra, olhou pro céu e viu aquela nuvem do arrepio, sentiu a lágrima escorrer no corpo, mas a lágrima virou, quase que do nada, de tristeza pra emoção. Ela não arrependeu de ser o que era.

Porque na vida daquela moça sem jeito, sem graça para o mundo e sem valor pra quem é rico, olhar para o céu com os olhos de Deus, sentir a chuva bater no rosto, com o vento soprando o ar da liberdade nos ouvidos, era um conjunto divino de realização.

Realização mesmo, no singular, porque era uma coisa só...