20.3.07

Mais uma metáfora da vida

Ela tinha 15 anos quando viu pela primeira vez aquele cachorrinho na rua. Tão surrado e sujo que chegava a dar dó. Os pêlos embolados do rabo, naquela mistura de vira-lata com vira-lata. Mas como era inteligente aquele cachorro! Esperava o sinal abrir, os carros pararem e atravessava na faixa de pedestres, esbanjando classe e um grau de civilidade que poucos homens ao redor demonstravam.

Ela não pôde resistir à simpatia dele e passou a dar comida a ele todos os dias. Era aquele pãozinho velho, ou uma banana já madura demais. E o cãozinho, satisfeito, lambia os beiços e, ao contrário do que ela imaginara, seguia seu caminho, com uma abanada de rabo de agradecimento e nada mais. Toda aquela educação do vira-lata cativava a menina.

Onde já se viu vira-lata que não pede mais comida?
E os anos foram passando, e aquela relação se estreitando. Era o resto do almoço ou do café da manhã, não importava, todos os dias às 11h ele aparecia na porta de casa, com aquela cara esperta e educada. E seguia seu rumo, aos afazeres de vira-latas.

Foi assim até o vigésimo primeiro ano dela. Naquele dia ele não apareceu.

Ela saía para uma entrevista de emprego. Uma realmente importante. Em uma grande empresa, um sonho para qualquer estudante. Mas ela não tinha muita certeza se era isso o que queria. Sabe aquele frio na barriga que deixa uma dúvida enorme? Se o caminho certo é esse ou aquele? Mas ela precisava tentar, tentar para não se arrepender. Até que, no caminho, ela viu o cachorrinho caído na faixa de pedestres, com a pata machucada, na rua, prestes a ser atropelado. Provavelmente já atingido por algum motorista furando sinal.

Em um momento de tristeza veio a imagem da sala de entrevistas e do possível emprego, em seguida a do cachorrinho morto, atropelado por um motorista qualquer. Viu o olhar perdido dele e lembrou daquela frase batida que sua mãe e avós repetiam. Aquela frase já surrada de tanto ser usada, mas absolutamente verdadeira, do Pequeno Príncipe: “Tu te tornas eternamente responsável pelo que cativas”. Arregaçou as mangas do elegante tailler, tirou o cachorrinho da rua e o levou ao veterinário.

Foi uma decisão. Nem certa nem errada, só uma decisão. Seguir para a entrevista podia parecer tentador, mas seu coração não deixou. E ela soube, naquele momento, que não tinha feito nada errado. Era simplesmente um opção de vida.

Porque no fundo do coração, naquela parte de alma que razão nenhuma alcança, naquilo que nos faz realmente humanos, mesmo sem querer, ela sabia: A vida tinha lhe aberto uma chance. A chance de começar tudo de novo. E racionalidade nenhuma podia vencer aquele sentimento.

5 comentários:

Gabi disse...

Fantástico!

Gabi disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Gabi disse...

A cada vez que leio descubro mais metáforas...propositais ou não...lindo lindo!

Anônimo disse...

Bah tchê! Com a censura onde a censura estiver!

Anônimo disse...

Bah, não entendeste, tchê? Queres que eu desenhe? Refiro-me à exclusão do 2o comentário pelo autor... Bah, tchê! Com o Estado Novo onde o Estado Novo estiver!